Brasil centraliza debates sobre certificação AQUA

Processo inspirado em modelo francês, e que avalia construções sustentáveis, concorre com o sistema norte-americano LEED 
Por: Altair Santos


A cidade de São Paulo sediou em março de 2011 a 2.ª Conferência Internacional sobre o Processo AQUA (Alta Qualidade Ambiental). Os debates em torno da certificação da construção sustentável, criada na França, atraíram especialistas de todo o mundo. Do Brasil, esteve presente o professor Manuel Carlos Reis Martins, coordenador executivo do Processo AQUA da Fundação Vanzolini.
Manuel Martins, coordenador do processo AQUA no Brasil: certificação se baseia em 14 critérios de sustentabilidade.
Em sua palestra, ele destacou os principais aspectos da certificação AQUA para edifícios habitacionais e edifícios em operação. Na entrevista a seguir, Manuel Martins explica as semelhanças e diferenças entre as certificações AQUA e LEED (Leadership in Energy and Environmental Design), como está o avanço das construções sustentáveis no Brasil e quais os requisitos que um empreendimento deve ter para reivindicar o certificado. Confira:
O processo AQUA (Alta Qualidade Ambiental) se compara à certificação LEED? O que eles têm em comum e o que têm de diferente?
Eles têm em comum a ideia de avaliar a sustentabilidade da construção, em termos de impacto ao meio ambiente, conforto e saúde. Essa preocupação do LEED é a mesma preocupação do AQUA. Agora, a partir daí, eles são totalmente diferentes. O LEED foi desenvolvido nos Estados Unidos com base na experiência de construção americana e nas normas e legislações americanas, enquanto o AQUA, no modelo francês HQE (Haute Qualité Environnementale), que é um modelo anterior ao LEED, leva em conta o desempenho, ou seja, não é um modelo que requeira soluções de projetos pré-concebidos. Porque quando o critério é desempenho, você pode responder a este desempenho com uma solução de projeto adequada para aquele local. Então, a partir daí, a Fundação Vanzolini fez, com a ajuda dos professores da Engenharia de Construção Civil da Poli/USP, a adaptação para o Brasil do HQE francês, que resultou no AQUA. Ele contempla legislações, regulamentações, parâmetros de desempenho e características da construção no Brasil.
Daria para dizer que a certificação AQUA é mais rigorosa do que o LEED?
Veja, o processo americano avalia por pontos. Então, tem de fazer um determinado número de pontos para ser certificado. Isso quer dizer que o empreendedor pode escolher os pontos que ele quer fazer, independentemente do contexto do empreendimento. O fato de ele escolher os pontos significa que o empreendimento pode não sair tão coerente assim e, mesmo assim, atingir o que é requerido pela certificação. Já o AQUA é mais rigoroso. O AQUA tem de atender todos os critérios. Ele busca uma série de fatores, como o contexto do empreendimento, onde ele vai se inserir, o que é o empreendimento, como ele vai funcionar. Além disso, analisa o local do terreno, a questão econômica e legal do empreendimento.
Como é feita a avaliação para se obter a certificação AQUA?
A avaliação do AQUA é feita por meio de auditorias presenciais pela Fundação Vanzolini e por um organismo independente de terceira parte, que faz uma avaliação local, presencial com o empreendedor. Outra diferença é que esta avaliação é feita nas fases principais do empreendimento: na concepção, que corresponde ao projeto, e na realização, que abrange o final da construção e a entrega. Na concepção, uma auditoria fornece um primeiro certificado. Quando concluídos os projetos, é feita uma nova auditoria e sai um novo certificado. O mesmo é feito na fase de realização e de entrega do empreendimento.
Os dois processos, LEED e AQUA, são concorrentes ou complementares?
Eles são concorrentes porque focalizam a sustentabilidade da construção, a avaliação da sustentabilidade da construção de forma diferente. O processo LEED, por exemplo, não tem critério para desempenho acústico. O AQUA tem. O AQUA também exige um sistema de gestão do empreendimento para que se garanta que os objetivos sejam de fato alcançados e controlados ao longo de todo o empreendimento. Então, com estas diferenças, eles não são complementares, pois se alguém desenvolve um projeto que atende o AQUA isso significa que este projeto identificou e atendeu todos os requisitos do AQUA e enfocou a sustentabilidade de maneira coerente e abrangente.
Por que a certificação LEED é mais difundida do que a AQUA?
Porque começou antes. Eles começaram em 1995 no Brasil e nós lançamos o AQUA em 1998. Mas hoje já está equilibrando isso.
A certificação AQUA se baseia em 14 critérios de sustentabilidade distribuídos em quatro grandes temas: ecoconstrução, eco-gestão, conforto e saúde. Quais são esses 14 critérios?
Os critérios são os seguintes:
1- Em ecoconstrução você tem a categoria edifício e seu entorno, que requer que sejam cuidados todos os aspectos que garantam uma boa inserção do empreendimento: onde ele vai ser feito, o ambiente construído, a infraestrutura, os acessos, a conectividade urbana, ecossistema, enfim, tudo o que interage com o edifício e a própria vocação socioambiental do bairro.
2- Escolha integrada dos materiais, produtos e sistemas construtivos. Isso requer critérios de durabilidade compatível com a durabilidade da edificação, por que não tem sustentabilidade se não for durável. Aí, é preciso estar em conformidade com as normas técnicas, pois o sustentável tem que funcionar. Mas, ao mesmo tempo, precisa atender critérios de baixo impacto ambiental e de baixo impacto à saúde humana. Neste caso, inclui também a questão da formalidade da cadeia produtiva, já que a certificação veta recorrer à informalidade.
3- O terceiro item é o canteiro de obras de baixo impacto, em todos os sentidos: ruído, poeira, sujeira, visual, incômodos ao tráfego, etc.. Tem também redução de consumo de água e energia durante a obra, redução da duração de resíduos, destinação correta dos resíduos e eliminação ou redução de poluição de ar, água e solo.
4- No bloco ecogestão, há requisitos começando pela arquitetura e pela envoltória do edifício, de eficiência energética do edifício. Então começa pela arquitetura desenvolvida de modo a aproveitar melhor as condições bioclimáticas e passa pela escolha de sistemas prediais de baixo consumo, de melhor eficiência energética, sistemas de ventilação, sistemas de água e sistemas de climatização. Passa também pelo uso, quando viável, de energias alternativas locais. Se for demonstrado que economicamente é interessante usar energia solar, por exemplo, aí tem que usar energia solar ou para aquecer água. Enfim, é uma análise que depende do local.
5- Na categoria gestão da água, entra o aproveitamento de água de chuva e os sistemas economizadores em bacias, torneiras, chuveiros, que reduzem também o consumo. Tem ainda a gestão da retenção da água de chuva e da infiltração da água de chuva.
6- Sobre gestão dos resíduos de uso do edifício, é preciso um programa, já contemplado no projeto, que informe os fluxos, os locais e as cadeias locais de aproveitamento de resíduos, para que eles sejam conhecidos de antemão.
7- Manutenção do sistema que trata de facilidades de acesso, facilidades de manutenção, monitoramento dos sistemas de iluminação, de resfriamento, ventilação e outros e intervenções que causem menos impacto, tanto ao meio ambiente quanto as pessoas que estão usando o edifício.
8- Em conforto, existe o requisito de conforto térmico, que também começa pela arquitetura e sempre é olhado junto com outros itens, como, por exemplo, a questão da energia, sombreamento, ventilação e climatização.
9- Em conforto acústico, levam-se em consideração os isolamentos e o nível de ruído. Começa pela disposição do ambiente em termos arquitetônicos e passa também pelo formato dos materiais e pelos isolamentos.
10- Conforto visual, que leva em consideração requisitos de iluminação natural – os quais ajudam a economizar a energia – e requisitos de uma boa iluminação artificial, como uniformidade de luminância, temperatura de cor e ofuscamento. Tudo isso, o projeto de luminotécnica vai ter de atender.
11- Em conforto olfativo, que trata da identificação dos odores, da ventilação e do isolamento dos odores, sejam de fora, sejam de dentro, o ideal é ter uma ventilação que garanta as trocas de ar e possibilite um ambiente com boa qualidade do ar em termos de odor.
12- Requisitos de saúde, que levam em conta a qualidade sanitária dos ambientes, a minimização das fontes de ondas eletromagnéticas e a adequação dos ambientes, em termos de facilidade de limpeza para evitar o crescimento de fungos e bactérias.
13- Qualidade sanitária do ar, para identificar agentes poluição – tanto de fora quanto de dentro, se houver -, e tratar de isolar e ventilar para garantir as trocas de ar saudáveis.
14- Qualidade sanitária da água, que precisa atender requisitos que garantam a portabilidade da água, a separação das águas, como redes água não potável e redes de esgoto, e também a separação das redes de água quente e água fria, quando houver no empreendimento.
O senhor, recentemente, palestrou sobre os aspectos da certificação AQUA para edifícios habitacionais e edifícios em operação. Como ela se aplica nestas obras?
Dos edifícios habitacionais você faz uma análise do local, faz uma análise do empreendimento, programa o que vai ser o empreendimento e identifica as 14 categorias de desempenho. Verifica em quais dará para chegar no bom, no superior ou no excelente. Justifica este perfil e define um sistema de gestão para garantir que no desenvolvimento dos projetos e na execução da obra este perfil vai se concretizar. Feito isso, realiza-se uma primeira avaliação e uma auditoria de certificação AQUA pela Fundação Vanzolini. Elas vão avalizar o sistema de gestão e detalhar os princípios de projeto para se atingir o desempenho em uso de energia, em uso da água e em conforto térmico, por exemplo. Para isso, é preciso detalhar no projeto os cálculos, os modelos matemáticos, as definições de materiais, os dimensionamentos dos ambientes, entre outros. Detalha-se o projeto inteiro, mostrando que ele vai resultar no nível de desempenho proposto pelo programa. No final, a Fundação Vanzolini faz outra auditoria e emite um certificado com as três fases preenchidas: programa, concepção e realização. Aí, se tem o empreendimento habitacional com o certificado de todas as fases. O certificado da fase programa pode ser usado no lançamento do empreendimento. O de concepção significa que o projeto deu corpo àquelas diretrizes fundamentadas no programa. E o de realização quer dizer que a sua obra ficou como era para ficar, atendendo o AQUA nos níveis propostos.
E para os edifícios em operação?
Os edifícios em operação exigem um diagnóstico diferente. Primeiro, é preciso verificar se eles têm uma qualidade ambiental intrínseca que permita atingir os níveis de desempenho do AQUA. É preciso um inventário, para ver como eles estão em termos de segurança, rede elétrica, proteção contra incêndios, segurança estrutural, acessibilidade e outros. Com base nesta primeira avaliação, o empreendedor define qual vai ser o perfil de desempenho e o sistema de gestão. Neste caso, diferente do sistema de gestão da execução da obra, que envolve outros atores, como projetistas, construtores e empreiteiros. Agora, prevalece a gestão de uso e os atores são administradores prediais, gestores de facilites e os próprios condôminos. Tudo isso pode ser feito em duas fases. Uma que diagnostica se é possível atingir um perfil de desempenho e estabelecer um sistema de gestão. Essa etapa vai medir durante um ano os registros de desempenho de energia, de água, de conforto e outros. Aí ocorre a segunda avaliação, que permite a certificação final da operação. Feito isso, a Fundação Vanzolini passa a acompanhar anualmente este edifício para manter a certificação, verificando se ele preserva e melhora seus desempenhos.
Empreendimentos voltados para o programa Minha Casa, Minha Vida têm condições de atender a certificação AQUA?
Hoje temos um empreendimento em São Paulo que já se certificou na fase programa habitacional para faixa de três a dez salários mínimos. É perfeitamente viável.
Em termos de empreendimentos sustentáveis, como o Brasil se posiciona no mundo?
França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, Japão e Austrália têm mais porque eles começaram antes. Eu visitei a Austrália em 1994 e eles já estavam fazendo. Na França, o nosso parceiro habitacional Cercol começou em 1992. Os americanos e os alemães começaram em 1990. Mas o Brasil está com um desenvolvimento rápido. Hoje, aliás, o país já tem mais empreendimentos com certificação AQUA do que LEED. São 29 edifícios certificados e um conjunto de 80 casas.
Entrevistado
Professor Manuel Carlos Reis Martins, coordenador executivo do Processo AQUA da Fundação Vanzolini.
Currículo

- Coordenador Executivo da Certificação da Construção Sustentável (Processo AQUA)
- Coordenador Técnico da Certificação de Sistemas de Gestão Ambiental ISO 14000 e auditor-líder de Sistemas de Gestão da Qualidade, Meio Ambiente, Segurança e Saúde Ocupacional e Responsabilidade Social da Fundação Vanzolini
- Professor de Sistemas de Gestão Integrada dos cursos de pós-graduação na FIA/FEA-USP e IEE-USP
- Engenheiro civil pela Escola Politécnica da USP e Ph.D pelo Imperial College – London University
- Especialização em Processo AQUA – Construção Sustentável (HQE Francês) – e Gestão (Brasil, França e Japão)

Contato: comunicacao@vanzolini.org.br / karina@ateliedetextos.com.br (assessoria de imprensa)
Jornalista responsável: Altair Santos – MTB 2330
Fonte: Cimento Itambé

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